texto de Rafael Cal
Era um menino brincando no tapete da sala. No canto, em uma poltrona velha e confortável, estava sentada um homem igualmente velho. Em suas mãos, um charuto, e sua fumaça enchia a sala, marcada pelo sol de fim de tarde que entrava pela janela. Também cheia de som estava o ambiente: da vitrola saíam as palavras enroladas de uma mulher. O menino olhava para o avô e para a fumaça, hipnotizado pelo cenário. E perguntou:
- Vô, por que você tá ouvindo essa música chata?
Essa cena aconteceu há mais de 20 anos. No sábado (17/12), morreu Cesária Évora, a mulher que cantava a tal música. Diferentemente dos pseudo-intelectuais, que passaram a jurar amor de uma vida inteira a cantora, postando vídeos e comentários a seu respeito segundos após o anúncio de sua morte, não acompanhei sua carreira. Tampouco tinha suas canções no setlist do carro ou do celular. Mas sempre fui simpático àquela senhora negra de voz firme e triste.
O episódio nunca desapareceu da minha memória. Nem a voz da cantora. Anos depois, vieram as gravações com Caetano e com Marisa Monte. Mas, foi em outra ocasião que a ouvi cantando uma música que nunca mais esqueceria: Sodade. Na primeira audição, foi completamente incompreensível, mas a lembrança da sala enfumaçada surgiu e tudo se clareou. A partir disso, quando ouvia alguma referência a ela, dizia que era a mulher da sodade. De certa forma, Cesária Évora me lembra saudade. Ao saber de sua morte, a música veio imediatamente a cabeça.
Lendo os obituários que se espalharam pela internet e pelos jornais, percebi a importância dela no aspecto coletivo. Uma guerreira africana, mulher e artista, que lutou contra os preconceitos, a instabilidade política e os problemas com o álcool. Passou por eles e se instalou em corações de todas as línguas. Superava-se assim, aquela minha imagem particular. O que era uma experiência privada se transformou, frente aos meus olhos, numa experiência coletiva. Talvez mais pessoas pudessem ter ouvido as músicas dela em situações parecidas. Pelas manifestações, percebi que era exatamente isso: Cesária Évora lembrava o passado ou a infância ou alguma lembrança delicada.
Naquela sala de estar, éramos eu e meu avô. Diante da minha pergunta, ele sorriu. Com toda a sua doçura, disse que chato era eu e que a voz que ouvíamos era de uma cantora caboverdiana chamada Cesária Évora. A música que ela cantava era uma morna. Depois, explicou o que era aquele ritmo caboverdiano: dizia ser um fado um pouco mais animado. Falava sobre saudade, Para ele, sobre um certo banzo ibero-africano, do qual compartilhava. Havia mais de 40 anos que deixara sua aldeia. Ele entendia o que estava sendo dito. Eu não. Mas afinal, era só uma criança perguntando uma coisa ao avô. Não havia nada a ser entendido ou explicado. Como na música daquela senhora negra de voz firme e triste, para qualquer compreensão, bastava o sentimento presente.
Este texto foi enviado por email por Rafael Cal (calrafael [arroba] yahoo.com.br) tendo sido publicado também no Mundo Mundano